Cadeia para quem mata no trânsito provoca polêmica no meio jurídico

Começo da tarde do dia 17 de março último. A estudante universitária Amanda da Silva Cruz, 20, dirige o carro de um amigo pela Avenida Deputado Paulino Rocha, no bairro Cajazeiras, em Fortaleza, depois de passar a noite em uma festa e consumir bebidas alcoólicas. Para se refazer da noitada, dormiu por mais de quatro horas. Mas, na ´descida´ do viaduto sobre a BR-116, no sentido perdeu o controle da direção do automóvel. Desgovernado, o carro quase colhe uma motocicleta, avança em direção à calçada e atropela três pessoas. Todas morrem na hora.

Bebida e remédio
Amanda Cruz foi presa em flagrante delito e quase linchada pelos populares e familiares das vítimas. No desastre, morreram uma adolescente que estava grávida, a filha dela de um ano e sete meses e, ainda, um homem de 60 anos. O bebê também não resistiu. O exame de bafômetro deu ´negativo´, mas a jovem revelou na delegacia que toma remédio controlado que não pode ser associado a álcool.

Dias depois, Amanda teve a prisão em flagrante convertida pela Justiça em custódia preventiva. Desde então, é mantida encarcerada, há exatos, 71 dias, no Presídio Feminino.

A universitária, que é ré primária, tem residência fixa, profissão definida e bons antecedentes (não possui nenhum registro criminal), foi denunciada pelo Ministério Público por triplo homicídio qualificado e, ainda, por aborto (morte do bebê). Se condenada a pena máxima pelas quatro mortes pode receber superior a 30 anos de reclusão.

O promotor Humberto Ibiapina considerou que a guiadora praticou um triplo homicídio por ´dolo eventual´ (quando o acusado não tem a intenção de matar a vítima, mas assume o risco de causar o óbito).

O caso é polêmico. Crimes de trânsito estão no centro das discussões no País. Recentemente, o jovem Thor Batista, filho do megaempresário Eike Batista, atropelou e matou um ciclista, no Rio de Janeiro, quando trafegava com seu carro importado a uma velocidade de 135km/h (25 a mais do que a permitida).

Thor está em liberdade e vai responder por homicídio culposo (sem intenção de matar), cuja pena é bem menor que a punição ao crime por ´dolo eventual´.

No meio jurídico, o assunto gera discussões. Na semana passada, o Diário do Nordeste ouviu o parecer de renomados advogados cearenses que militam na área Penal. As opiniões são acaloradas. A prisão para quem comete crime de morte no trânsito é motivadora de questionamentos entre os especialistas.

Divergem
“Manter um cidadão sob prisão preventiva, única e exclusivamente por haver participado de um homicídio de trânsito, não me parece razoável. A prisão preventiva só é cabível na hipótese de o acusado, em liberdade, causar risco à ordem pública, embaraço para a colheita de provas ou obstáculo para a aplicação da Lei Penal”, afirma o advogado criminalista e mestre em Direito Leandro Duarte Vasques.

“A possibilidade jurídica de manter ou não alguém preso por delito cometido no trânsito é perfeitamente razoável, desde que analisado no caso concreto”, defende o advogado Paulo César Feitosa.

“A preventiva não deve ser decretada simplesmente pela ´gravidade´ do fato, mas devem ser avaliadas as circunstâncias desde o comportamento do acusado, se estava alcoolizado, se estava drogado, dirigindo em alta velocidade, se prestou socorro à vítima etc”, completa Feitosa.

“Hoje, a prisão preventiva é exceção. O Estado dispõe de outros meios de punir as medidas cautelares. É justo manter alguém que nunca foi sequer detido em um presídio junto com traficantes, estupradores, assaltantes e homicidas?”, questiona o advogado Paulo Pimentel.

Especialistas dão opinião sobre o tema
“A prisão preventiva deve ser medida excepcional, especialmente após o advento da lei federal 12.403/11, que disciplinou as medidas cautelares no âmbito do processo penal. Todavia, quando a segregação do acusado for útil e necessária à persecução criminal, ou seja, quando a liberdade do réu trouxer embaraço ao processo em si, haverá de ser adotada a prisão preventiva”, defende Valdetário Monteiro, presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-Ceará).

“O crime de trânsito, quando ocorrido em virtude de embriaguez, participação em ´rachas´ e excesso de velocidade próximo a locais movimentados, é tema gerador de discussão doutrinária e jurisprudencial. Apesar dos diversos posicionamentos, podemos afirmar que o melhor apoio ao juiz, na árdua tarefa de julgar entre o reconhecimento do ´dolo eventual´ ou da ´culpa consciente´, não é outro, senão, a prova colhida e a boa instrução processual, que, certamente, darão o norte necessário para o julgamento mais adequado e justo a cada caso concreto”, afirma o criminalista Paulo Quezado.

Risco
“Nos casos de delitos de trânsito existe uma comoção que pode levar os desavisados a pleitearem a aplicação do ´dolo eventual´ naqueles tipos penais sob a ótica de que, ao pilotarem o volante de um automóvel, estarão assumindo o risco de eventuais consequências graves. Discordamos. A conduta do motorista é, quase sempre, culposa, surgindo daí a figura da ´culpa consciente´, onde o guiador assume o risco de sua conduta, mas não se conforma com o resultado”, ensina Delano Cruz, advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal da Unifor.

Amanda Cruz segue detida e depõe hoje
Polêmica à parte, o caso da estudante Amanda Cruz terá um novo capítulo hoje. Ela deverá ser interrogada, logo mais, a partir das 14 horas, pelo juiz titular da Terceira Vara do Júri da Capital, José de Castro Andrade; e pelo promotor de Justiça Humberto Ibiapina. Por duas vezes, o depoimento da universitária foi adiado. Hoje, além dela, serão ouvidas as testemunhas da defesa.

No rastro da discussão sobre a aplicação da Lei Penal aos acusadores de mortes em acidentes de trânsito, os posicionamentos dos especialistas divergem.

Remédio
Presa em flagrante logo após o desastre, Amanda Cruz foi levada por policiais do Ronda do Quarteirão para o plantão do 30º DP (São Cristóvão). No depoimento que prestou ao delegado Ricardo Romagnoli do Vale, contou que havia passado a noite e madrugada anteriores ao acidente em uma casa de show de forró, onde consumiu bebidas alcoólicas (cerveja e vodca).

Revelou, ainda, que, desde criança faz uso de um medicamento de uso controlado, à base de Fenobarbital, que tem por objetivo evitar crises convulsivas. A associação entre o álcool e o medicamento pode causar graves consequências para quem dirige veículos.

Ainda em suas declarações na Polícia, Amanda Cruz negou ter dormido na direção do carro do amigo. Segundo ela, depois da noite na festa, foi para a casa de um amigo (irmão do dono do carro sinistrado) e dormiu por cerca de cinco horas. Portanto, segundo ela, na hora do acidente estava plenamente consciente. O exame de bafômetro comprovou que ela já não estava mais sob o efeito das bebidas.

A estudante afirma que, na ´descida´ do viaduto, tentou desviar de um buraco, quase bateu em uma motocicleta e, depois disso, perdeu o controle da direção. O carro se desgovernou ela “não viu mais nada”. No acidente, morreram Marcilene Silva Maia, 17; a filha dela, Ana Rafaela da Silva Maia, de um ano e sete meses de vida; o bebê que Marcilene esperava; e ainda, o pedestre José Flávio Bezerra.

Fonte: Diário do Nordeste